terça-feira, setembro 26, 2006

Avalanche



Eu me vejo lá de cima, fora do corpo, e sou só um pontinho na neve. Um bip fraco me traz de volta. O relógio congela por baixo da manga de Gore-Tex, avisando que certas coisas têm data e hora inexatas. A falta de ar dá enjoo, seguro o vômito, levanto o queixo, respiro, aperto os olhos tentando lembrar de alguma coisa, qualquer coisa, do gosto de sangue, do primeiro grito de gol, daquela menina no ônibus. Nada. Com o jogo já perdido, puxo uma gavetinha do fundo da consciência e dali sai a visão do impacto. A avalanche vai me pegar de frente, distraído, olhando o sol. Só dá tempo de girar os olhos sessenta graus à esquerda.
Câmera lenta.
Silêncio.
A parede gigante vem crescendo, sussurrando consigo mesma, tranqüila e impassível como Bruce Lee. Um batuque de candomblé martela nos ouvidos, desliza pelo canal auditivo e tamborila no coração, que bate com violência, mas sem ritmo. Eu quero sentir medo, só que o medo não vem, acho até que ensaio um suspiro, como os suicidas durante o salto ou os elefantes quando pressentem o tiro.
De repente, o mundo fica branco. Depois vermelho. Depois verde. O corpo não se desloca, mas a terra sai do eixo. Então as lembranças explodem: cheiro de pão caseiro, Merthiolate na ferida, bicicleta com vento no rosto, apito de panela de pressão, tapa na mão, soluço engasgado, saudade, muita saudade, saudade doída, daquelas quando a gente é criança demais e não sabe o motivo, só sente.
Foi num piscar de olhos, tempo suficiente para uma seqüência de tapas na cara. Bem feito para mim, tomara que ninguém me encontre, nunca mais, nem as melhores equipes de resgate da Sessão da Tarde. Virei picolé azedo, piada sem graça.
Morri de tristeza, ali, no branco dos teus olhos.

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